Tem sido dito que o Brasil é uma Belíndia. Na Genética Forense não temos dúvidas que encontramos Laboratórios com a qualidade dos existentes na Bélgica, Inglaterra ou EUA. Em contrapartida, creio que o outro extremo não é a Índia, mas talvez o Zaire ou o Gabão.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça irá, ao término do recesso forense, julgar o mérito do habeas-corpus proposto em favor do Promotor de Justiça, Igor Ferreira da Silva, atualmente foragido, após julgamento que o condenou por supostamente ter assassinado sua esposa grávida em adiantado estado gestacional. Esse processo teve ampla repercussão nacional, sendo que perícia realizada por laboratório da USP no DNA extraído dos ossos do feto, de sua mãe e do sangue do promotor excluiu-o da paternidade, certamente trazendo a suspeita de um crime passional.

Tivemos a oportunidade de examinar o laudo pericial e, devido a vários motivos, chegamos à conclusão de inexistência de valor científico neste laudo. Os motivos: o perito não comprovou sua experiência em Genética Forense, extraiu DNA dos ossos sem equipamento adequado, não apresentou a identificação dos alelos (marcadores genéticos) por nomenclatura internacional, utilizou reagentes feitos “in house” ao invés de kits de DNA validados e amplamente utilizados pela comunidade especializada, além de não possuir equipamentos apropriados para este fim como um seqüenciador automático para a análise genética. O perito não apresentou a imagem dos DNA analisados e informou que não realizava testes de qualidade externa, pois não tinha verbas para tanto. Para completar o nosso exame do laudo pericial, refizemos os testes de DNA com o sangue do promotor e, demonstramos erros em sua identificação molecular nos primeiros testes, erros esses confirmados por um terceiro laboratório. Além disso, analisamos também o DNA do sangue da mãe e do pai da vítima e os resultados mostram que, se os testes de DNA utilizados no laudo estivessem corretos, a vítima não seria filha dos seus pais. Nossa conclusão não é sobre a inocência do réu, mas sobre um laudo imprestável do ponto de vista da Genética Forense.

Outro caso recente aconteceu no interior de São Paulo. Um homem foi morto, sendo que um revólver manchado de sangue foi achado junto da vítima. Um teste de DNA foi realizado em laboratório da localidade, identificando o perfil genético desse sangue. Posteriormente, a polícia levou três suspeitos para realizarem os testes de DNA na tentativa de identificação do assassino. O laboratório forneceu laudo com a identificação de um dos suspeitos com identidade total com a mancha de sangue, excluindo os demais da responsabilidade. O réu foi preso e após sua liberdade, aguardando processo, repetimos seus exames. O perfil genético encontrado não era o seu, mas de um dos outros suspeitos. O laboratório tinha trocado as amostras.

Outro exemplo é caso do cantor João Paulo, falecido em acidente de automóvel, sendo posteriormente réu de um processo de paternidade. Recebemos amostras de ossos carbonizados do cantor, enviadas pelo perito oficial. Outros dois laboratórios também realizaram análises. Excluímos facilmente a paternidade, enquanto os demais deixaram de concluir. Certamente não estavam equipados para a análise de DNA de ossos e dentes, no entanto aceitaram a incumbência. O veredicto final aconteceu após um ano, devido ao juiz ter solicitado nova perícia indireta, pela avaliação de amostras de familiares do cantor.

Essas imperfeições nos deixam apreensivos, sendo que casos semelhantes acontecem diariamente nos testes de paternidade, executados aos milhares pelo país afora. Existem laboratórios onde o responsável técnico não preenche os critérios internacionais de qualidade, o qual deveria ter treinamento de no mínimo três anos em laboratório de Genética Forense. Muitos laboratórios foram formados pelos Governos Estaduais e Universidades sem demonstrarem competência prévia, sendo que não passaram por exames de qualidade externa e ainda utilizam alunos como mão de obra.

Infelizmente o Judiciário não tem ainda capacidade para avaliar exames de DNA. Estes exames deveriam ser iguais em todos os laboratórios, mas não o são. Um rigoroso certificado de controle de qualidade externa deveria ser exigido, incluindo o treinamento do Diretor Científico do laboratório em instituição ou laboratório credenciados, comprovantes de utilização de reagentes validados internacionalmente, equipamentos e facilidades apropriados e, um cuidadoso registro das amostras de tal forma a saber quando, por quem e de quem as mesmas foram recebidas no laboratório, quem as manipulou durante os exames e o destino final das mesmas após a conclusão. Quando vidas estão em jogo todo cuidado é pouco.

Autor: Dr. Luiz Fernando Jobim
Artigo Publicado no jornal Folha de São Paulo | 26 Fev de 2002

 

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